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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Retratos da despedida

Ao percorrer a velha casa pela última vez fiz, em poucos segundos, uma retrospectiva de fatos e sentimentos da minha história nos últimos anos. Correu-me freneticamente cada cômodo do antigo lar na cabeça, todos carregados de inúmeros momentos ali saboreados e abarrotados pelo valor e significado que dei a cada instante vivido. Resolvi então percorrer cada local que concebia como lar para guardar as últimas imagens.

Comecei pela parte de cima da casa. No quarto da mãe repousei o corpo na maioria dos dias, após a separação de meus pais. Testemunhei os momentos de tristeza da mainha e a vi vibrar com nossas conquistas. Ouvia durante as madrugadas as preces da “Vó”, onerando Deus com pedidos. Neste lugar, arraiguei o sonho de ser lutador, mesmo que por poucos dias, ao pendurar um saco de boxe infantil no gancho da rede. Infantil permanecia o comportamento, ao despejar toda ira numa sequência enlouquecida de golpes como se cada um daqueles ferisse e exterminasse inimigos imaginários e reais. Fez-se também como local para reconciliação e paz após desavenças familiares.

O banheiro da parte de cima foi o local que mais me viu nu, digo isso no sentindo real e psicanalítico do fato. Cantarolei os primeiros sambas aprendidos que denotavam o estado de espírito diário, acalentando de forma velada sonhos de ser poeta. Considero-o como um local de desejos, o qual não ligava quando despia qualquer máscara utilizada na vida cotidiana.

No quarto da minha irmã o sol chegava cedo e acariciava mornamente o corpo de quem lá estivesse. Nele havia um estreito corredor formado pelo espaço entre a cama e um móvel branco, caminho percorrido por mim uma infinidade de vezes durante o dia. Neste lugar conheci Saramago, Kundera, Amado, Vinícius e Chico. Conseguia notar em frente ao espelho lá localizado, um amadurecimento pungente.

Andei um pouco mais e reparei que a casa parecia dormir sem objetos e móveis. Dominado por um terror mudo relutei em adentrar meu quarto pela última vez. Tentei fugir das imagens que dançavam na cabeça em vão, algo digno de um trabalho de Sísifo. Passavam como um filme, as imagens de um artesão mambembe, tecendo uma pulseira. Ao final do trabalho notei que havia um excesso de fio, destoando de todo o resto, que ao ser puxado de forma acidental desfez toda a beleza daquele relicário com um único gesto. Notei um sorriso tolo no rosto dele ao ver o próprio infortúnio.
Penetrei o quarto com o coração inquieto e receoso. Havia um medo interno que ao sair daquele lugar imitaria não só o sorriso tolo do artesão, e sim repetiria o ato de puxar um resto de fio da minha história, de forma ríspida, acabando rapidamente com os nós que há anos tecia. O quarto nunca foi tão meu, era também o quarto das visitas. Nos últimos tempos havia tornado-se num vestiário que acompanhava mudanças diárias de roupa e humor. No começo valia-me como refúgio nas intermináveis madrugadas de estudo, como abrigo para refletir e ficar só. Sempre fui avesso a solidão, talvez por isso tenha utilizado o lugar cada vez menos. Suponho ainda, que diante das inúmeras reflexões que realizei, resolvi considerar o recinto como impróprio, afinal de contas, ele estava impregnado de receios, carregado com pensamentos inomináveis e indescritíveis que contaminariam ao mínimo contato. Apesar de tudo, amava aquele lugar como a nenhum outro.

Ao descer as escadas, deparei com os restos da sujeira que a mudança proporcionou e busquei logo esquivar-me, imaginando que agindo assim fugiria das recordações sujas, daquilo que me faria sofrer. No penúltimo degrau que antecedia uma visão parcial da sala, imaginei-a com uma conformação habitual, repleta de móveis e objetos.

Cheguei à sala diminuta e fiquei frustrado ao notar que a mãe já doara tudo aquilo que até pouco tempo atrás dimensionava o sentido da palavra casa. Senti como se tivessem deitado a mão no que era essencialmente meu, coisas que nem dava valor, mas que com o processo de perda haviam ganho novo significado, repleto de nostalgia e valor afetivo.Tive consciência e ri do sentimento de posse, lembrando que não existe nada mais humano que dar ares superlativos a perda. Por vezes senti remorso, pois racionalmente sabia que esses objetos teriam mais utilidade aos receptores que a mim. Compreendi subitamente o que incomodava no vácuo da sala. O vazio da sala mimetizava o vazio interior.Cada canto perdeu referência, deixando-me totalmente alheio ao que se fez tão familiar por tanto tempo.

Invadi a cozinha com os olhos marejados. A gratidão tomou conta ao encontrar no pensamento as imagens das pessoas que fizeram parte da nossa vida e lá trabalharam. Continuava algo estranho, que prensava sobre o peito um fardo cada vez maior, carregado de medo do novo. Lembrava do cair de cada prato e do barulho, e isso incomodava. Pensei e elaborei, que a derradeira entrada na cozinha era como um jogar de prato no chão, algo definitivo, esfacelando todas as memórias daquele lugar a esquírolas de vidro que em breve poderiam constituir um lindo vitral ou encravar-se-iam nas entranhas de alguém, provocando dor.

O teto infiltrado do banheiro da parte baixa parecia chorar a despedida quando o vi desabar o pingo final, tão irritante e frequente. Ao percorrer com os olhos toda a dimensão deste lugar, tive clareza que o teto e eu derramávamos lágrimas iguais; nostálgicas e irmãs, afinal, depois de anos de convívio tínhamos testemunhado um o crescimento do outro. O crescimento dele eu quis parar muitas vezes, assim como faziam comigo na vida real lá fora.

Saindo da parte interna da casa tive acesso ao portão, o qual separava a sala da velha área de cimento. Entendi como ato falho o virar da chave para o lado errado. Este ato tão corriqueiro e mecânico equivocado denotava o inconsciente, na verdade eu não queria ir embora e tentava auto-argumentar que um futuro melhor me esperava.
A velha área recebia com primor as cadeiras de balanço brancas e os cachorros, sendo minha visão finda. Ela era a parte mais receptiva do lar, acolhendo parentes, amigos, conhecidos e transeuntes com o mesmo brilho, simplicidade e aconchego. Aceitava sobre ela as mais diversas funções. Por ser a parte mais simples nunca era elogiada e exaltada, mas nem por isso deixava de ser como era, simples. Talvez por isso, o destino a tenha reservado como derradeira imagem para que o reconhecimento existisse, mesmo nos instantes finais.

Ao cessar a última tramela notei-me oco, um pensamento infantil consumia toda a racionalidade. Parecia até que as memórias ficariam aprisionadas para sempre na casinha fincada no Pinheiro e que por vingança, causada pelo abandono, ela faria questão de apagar minhas histórias com uma mão de tinta e alguns moradores novos.
Personifiquei a casa, dotando-a de sentimentos. A primeira vista vi mágoa, buscando a companhia de outro menino birrento ou de algum garoto que sonha ser astronauta, músico ou bombeiro. Envolto na personalidade da casa, compreendi a complexidade e instinto maternal. Ela por anos havia acalentado meus sonhos e ajudado a construir quem sou. Imaginei que a casa tivesse perdoado, fazendo sinceros desejos de boa sorte na vida nova. Porém ela fez questão de dizer através dos ventos que lá avançavam, ganhando contorno em suas paredes, deixando surgir notas ao baterem em portas e janelas, para que eu fosse embora em paz, sem nenhum peso, pois eu havia de voltar para pousar a vista nela sempre com o mesmo olhar de carinho e amor, igual ao deste momento. Já ela, cuidaria de mim em silêncio e ficaria próxima, bastando que rememorasse nossos momentos para invocá-la, podendo guardá-la como símbolo de lar para todo o sempre.