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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sobre flores e estrelas.

Há quem nasça com um dom sublime. O de exalar seu perfume por onde passa, transformando a vida de quem a conhece melhor. Um cheiro próprio que carrega em si amor, carinho e generosidade. Essas pessoas são como as flores que colorem e dão vida, dando de presente seu perfume e nada pedindo em troca.

Há ainda quem nasça com um brilho próprio, capaz de alumiar a existência de quem se faz presente. Essas pessoas fazem da sua luz uma guia a quem se encontra em meio a situações nebulosas, temíveis e de escuridão, sendo verdadeiras estrelas.

Foi assim que pensei em Dona Stella, durante a insônia comum aos dias tristes. Como o próprio nome dizia era como uma estrela para todos que a conheceram, sem perder a capacidade de ser também uma flor que suavizava a existência de quem a cercava.

Há sete anos a conhecia. Tive a visão de uma mulher ativa e sagaz todo o tempo. Tenho a imagem dela no sofá ou na sua cadeira lendo seu jornal ou vendo televisão, para depois dar sua interpretação e opinião nas conversas familiares. Gostava de sentir-se centro da família, ora como conselheira ora como observadora, mas sempre sabendo dos sabores e dissabores da vida familiar. Nas festas observava tudo e aproveitava, fazendo comentários nos dias seguintes. Falando em festas, lembro da preocupação quando Dona Marlene saía, parecendo mãe de adolescente. Em relação às meninas tinha uma ligação afetiva sem tamanho, sentimento que era alimentado pelo orgulho das conquistas delas que alardeava sem falsa modéstia.

O amor que ela nutria por suas meninas era imenso. Dona Marlene, Tia Sayo, Manu e Maria eram suas eternas meninas. Ela não se dava por vencida, apesar das limitações que o corpo impunha. Tinha uma enorme vontade de viver e soube fazer da vontade a vida. No fim, quando já não podia fazer frente a essas limitações, foi forte para suportar as dores e os desígnios que a falta de saúde traz, aguentando as agruras e percorrendo um caminho que beirava o martírio. Inconscientemente ela fez isso por amor. Um amor verdadeiro. Sabia ela que uma saída de cena abrupta seria muito mais traumática para quem ela tanto amava. Então, ela deixou seu corpo padecer lentamente, caminho mais difícil, para que, principalmente suas netas, maturassem a idéia dela partir, entendendo melhor o fato. Tudo por amor. Tudo com o toque suave de uma flor e a luz de uma estrela.

No olhar derradeiro, mostrou-se serena. Até nesse momento ela quis dar ares menos trágicos ao fim. Era uma forma de confortar a todos, sendo seu último ensinamento. A camisa do CRB e as rosas vermelhas acompanharam-na como havia pedido. E quando as placas de concreto brancas davam como certa a separação, pelo menos neste plano, eis que uma rosa vermelha cai delicadamente, de forma descuidada e doce sobre aquilo que a separava de todos. De canto de boca não pude conter o sorriso, mesmo em um momento assim. Aquela que era chamada de flor por suas netas, fez-se flor concretamente, bonita e vermelha. Porque estrela ela foi durante a vida inteira.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Um sábio me falou...

Deixa a vida escorregar
Que seja mais leve, dúctil e doce
Sem o tom flébil que lhe é peculiar
E que ela passe bem devagar
Moldando-se a tudo que encontre
Dobrando-se toda, sem nunca curvar.

Lúmen

Eu vou agora, seu moço,
Cidade afora com dia claro
A luz que irradia segue-me
E como a mim segue milhares
Faz-nos cegos de luz
Num cotejo fosco, perolado
Onde os dias passem
De forma irreprimível
De forma irrecuperável
E que nada sobre,
Além dos passos dados.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A minha chuva

O céu tem tanta coisa bonita pra mostrar
Um azul, as nuvens, o sol, a lua...
Tudo tão intenso
Que às vezes penso, fico horas a exclamar
Mas às vezes ele esconde tudo isso
Muda, chove, breu, eclipse, perde a beleza
Transfigura-se todo, sem nem se importar
Nessas horas, desnudo a culpa e me compreendo
De forma leve, vou mudando e finalmente me perdoo
Deixando também meu tempo fechar.

Não se manda.

Apertei as mãos contra o corpo para evitar um possível abraço
Virei às costas para não sentir aquele desejo e dele ser refém
Guardei as palavras para não ter surpresas, aflito, medo de falhar
Mas corpo guarda seus truques para provar que tem suas vontades...
Quando pensei no que havia de fazer, já estava feito:
Braços estendidos, frontalmente expostos e a boca dizia eu te quero.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sobre o medo e a ternura.

“(...) As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.” ( Carlos Drummond de Andrade- Os ombros suportam o mundo)



Hoje fui sacudido por uma informação que deixa indignado qualquer indivíduo que carrega em si um resto de dignidade. Em uma sala de reuniões na Universidade Federal de Alagoas decorria uma palestra de orientação de como nós, estudantes de medicina do 5° ano, deveríamos agir e nos portar nas comunidades da periferia de Maceió que são atendidas pelo programa de saúde da família.

No meio das discussões várias perguntas foram feitas e respondidas. Tive a coragem de perguntar se poderíamos abordar temas políticos, mostrando a determinação social da doença. A resposta princípio foi satisfatória, um sonoro “sim” por parte dos professores presentes. Depois de alguns segundos, fez-se uma ressalva visando mostrar a realidade e nos proteger. O professor salientou para evitarmos o assunto drogas, pois em várias comunidades os diretores das unidades de saúde, assistentes sociais e outros profissionais já foram ameaçados por tocar no tema.

Ao ver minha cara de espanto o professor contou o caso de uma diretora médica que recebeu um morador da comunidade. “Por gostar muito do atendimento do posto”, o morador foi lá avisar/intimar para fechá-lo por uma semana, pois haveria uma disputa entre dois grupos de traficantes rivais em uma área próxima à unidade. A unidade foi fechada e a guerra realmente aconteceu.

A outra médica presente colocou mais elementos sobre essa situação e falou sobre uma assistente social de uma escola próxima a sua unidade de saúde que recebeu um morador da comunidade envolvido com tráfico. Ele foi lá “pedir” para que o tema drogas/crack não fosse tocado na escola, nem nas visitas as casas das crianças que lá estudavam. Depois disso, os convidados ratificaram novamente o cuidado que teremos que ter para falar sobre determinados temas nas comunidades e pediram para que falássemos sobre álcool e tabaco, mas sobre as outras drogas não.

Ao voltar pra casa fiquei com isso na cabeça, chegando a incomodar e várias indagações surgiram. É esse o legado que deixaremos? Deixemos então que o ciclo de violência continue e aumente exponencialmente até que nossas janelas fechadas já não consigam mais nos proteger da realidade que não queremos enxergar? Seremos capazes de lavar a consciência junto às vestes diárias?

Logo nas áreas de maior vulnerabilidade para o consumo não se pode falar sobre drogas. Isso fere qualquer princípio, chega a ser brutal, imoral. O medo pelas histórias contadas também me tomou, mas ao mesmo tempo chegou a ternura. A ternura de ver crianças sendo aliciadas sem nenhuma defesa, ficando a mercê do tráfico. Por uma segurança momentânea, estamos negligenciando informações que podem alterar vidas, salvar vidas.

Se o medo fizer o silêncio imperar teremos que conviver com mais situações dessas no futuro, e as crianças que hoje estão sendo aliciadas e estão em situação de risco podem posteriormente, quando adultos (caso cheguem a tal ponto da vida), aliciar e também ameaçar alimentando um novo ciclo. Sei que o instinto de sobrevivência é primitivo, porém a omissão não é sobrevivência. A omissão é uma forma de adiar os fatos para que eles venham no futuro de uma forma mais cruel. Enquanto isso mais uma música é tocada no Rock in Rio...

domingo, 14 de agosto de 2011

Passatempo


Hoje, no olhar de meu pai
Vi uma ânsia por afeto
Ele segredava em cada gesto
Que a vida era curta
E que o tempo dele se esvai
Tentava recuperar avidamente
Cada minuto perdido
Cada erro cometido
Cada sorriso não dado
Raptava-me abraçando...
Encontrava no meu silêncio
Na minha falta de jeito
Um equívoco do passado
Coitado! Fez-se em lágrimas
Lágrimas passadas, espaçadas
Dizia que me amava como desculpas
E sem culpas, esqueceu o ontem
Deleitando-se no sofá, ao fim da tarde
Como se não houvesse amanhã
Confundindo-me se aquilo
Era por sono ou quebranto...
Olhei de canto e ao vê-lo
Não sei se por medo ou amor
Sentei ao seu lado e cai em prantos.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Tanto mar, tanto mar...


Sexta-feira, 09 de fevereiro de 2007, um aflição desmedida chegou ao fim. Fui sacudido por uma notícia que há anos esperava. Fui aprovado no curso de medicina da Universidade Federal de Alagoas. O crepúsculo da quase noite conflitava com a alegria que irradiava de mim, dissipando raios coloridos, os quais foram capazes de atingir a todos ali presentes, provocando uma embriaguez eufórica, que ganhou forma na expressão dos meus familiares e vizinhos, tomando-me de assalto.

Uma estranha lucidez me tocou ao ver os olhos verdes da minha mãe, aqueles olhos me diziam que um novo Fernando iria surgir. O amadurecimento chegaria desacompanhado dos louros da vitória. Entendi como se aquele momento significasse o nascimento de um filho planejado que há muito não vem. Todos comemoravam um novo ciclo, uma nova vida; inclusive eu. O nascimento foi vociferado por uma rouca voz que saia com dificuldade de um rádio cor de prata, que ganhou eco com um sonoro grito de todos os presentes naquela sala. O olhar da admiração de quem me parabenizava alimentava meu ego e alavancava minha vaidade, provocando uma névoa narcísica que tomou conta, chegando até a cegar. Envolto de elogios é difícil de enxergar longe. Havia tanto mar, tanto mar...

Nos primeiros passos na faculdade, percebi entre os colegas uma base predominantemente elitista, que preferia subir em um pedestal imaginário e de lá não descer mais. Durante o curso vi muitos colegas subindo mais alguns degraus desse pedestal, enquanto a minoria descia. O contato precoce com os pacientes nos deu a exata noção do enorme abismo social existente, e do nosso papel social, cabendo a nós decidir a quem serviríamos. O Centro Acadêmico Sebastião da Hora, através das pessoas que lá militam, foi fundamental para minha decisão de qual parcela da população irei servir.

De alguns mestres levarei comigo grandes lições, de outros nem tantas. As contradições entre o que alguns professores falam do que executam é algo que muito me incomodou durante o curso, talvez pelo medo de ser sugado por tamanha hipocrisia e torna-me também assim. Ao longo do curso há o delineamento da forma que nossos colegas irão atuar no porvir e isso é também algo muito intrigante, podendo ser decepcionante.

No olhar de cada paciente captei sensações diferentes, porém havia uma que era comum a todos. O desejo de ser tocado, ouvido atentamente, de sentir-se humano verdadeiramente. É na soma desses olhares que eu me reconheci, e vi um novo Fernando, como haviam profetizado os olhos verdes da minha mãe.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Cinzas

No que nos transformamos?
Pergunto-me todos os dias
Porque tantas vezes calamos
Mergulhando num silêncio ensurdecedor
Sem saber ao certo qual o pecado
E se houve pecador

Onde foi que erramos?
Pergunto-me todos os dias
Porque tantas vezes voltamos
Esfacelando o resto do que um dia foi luz e calor
Até reduzir a sombras e mágoas
Qualquer tipo de amor.


*** Fernando Tenório

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Retratos da despedida

Ao percorrer a velha casa pela última vez fiz, em poucos segundos, uma retrospectiva de fatos e sentimentos da minha história nos últimos anos. Correu-me freneticamente cada cômodo do antigo lar na cabeça, todos carregados de inúmeros momentos ali saboreados e abarrotados pelo valor e significado que dei a cada instante vivido. Resolvi então percorrer cada local que concebia como lar para guardar as últimas imagens.

Comecei pela parte de cima da casa. No quarto da mãe repousei o corpo na maioria dos dias, após a separação de meus pais. Testemunhei os momentos de tristeza da mainha e a vi vibrar com nossas conquistas. Ouvia durante as madrugadas as preces da “Vó”, onerando Deus com pedidos. Neste lugar, arraiguei o sonho de ser lutador, mesmo que por poucos dias, ao pendurar um saco de boxe infantil no gancho da rede. Infantil permanecia o comportamento, ao despejar toda ira numa sequência enlouquecida de golpes como se cada um daqueles ferisse e exterminasse inimigos imaginários e reais. Fez-se também como local para reconciliação e paz após desavenças familiares.

O banheiro da parte de cima foi o local que mais me viu nu, digo isso no sentindo real e psicanalítico do fato. Cantarolei os primeiros sambas aprendidos que denotavam o estado de espírito diário, acalentando de forma velada sonhos de ser poeta. Considero-o como um local de desejos, o qual não ligava quando despia qualquer máscara utilizada na vida cotidiana.

No quarto da minha irmã o sol chegava cedo e acariciava mornamente o corpo de quem lá estivesse. Nele havia um estreito corredor formado pelo espaço entre a cama e um móvel branco, caminho percorrido por mim uma infinidade de vezes durante o dia. Neste lugar conheci Saramago, Kundera, Amado, Vinícius e Chico. Conseguia notar em frente ao espelho lá localizado, um amadurecimento pungente.

Andei um pouco mais e reparei que a casa parecia dormir sem objetos e móveis. Dominado por um terror mudo relutei em adentrar meu quarto pela última vez. Tentei fugir das imagens que dançavam na cabeça em vão, algo digno de um trabalho de Sísifo. Passavam como um filme, as imagens de um artesão mambembe, tecendo uma pulseira. Ao final do trabalho notei que havia um excesso de fio, destoando de todo o resto, que ao ser puxado de forma acidental desfez toda a beleza daquele relicário com um único gesto. Notei um sorriso tolo no rosto dele ao ver o próprio infortúnio.
Penetrei o quarto com o coração inquieto e receoso. Havia um medo interno que ao sair daquele lugar imitaria não só o sorriso tolo do artesão, e sim repetiria o ato de puxar um resto de fio da minha história, de forma ríspida, acabando rapidamente com os nós que há anos tecia. O quarto nunca foi tão meu, era também o quarto das visitas. Nos últimos tempos havia tornado-se num vestiário que acompanhava mudanças diárias de roupa e humor. No começo valia-me como refúgio nas intermináveis madrugadas de estudo, como abrigo para refletir e ficar só. Sempre fui avesso a solidão, talvez por isso tenha utilizado o lugar cada vez menos. Suponho ainda, que diante das inúmeras reflexões que realizei, resolvi considerar o recinto como impróprio, afinal de contas, ele estava impregnado de receios, carregado com pensamentos inomináveis e indescritíveis que contaminariam ao mínimo contato. Apesar de tudo, amava aquele lugar como a nenhum outro.

Ao descer as escadas, deparei com os restos da sujeira que a mudança proporcionou e busquei logo esquivar-me, imaginando que agindo assim fugiria das recordações sujas, daquilo que me faria sofrer. No penúltimo degrau que antecedia uma visão parcial da sala, imaginei-a com uma conformação habitual, repleta de móveis e objetos.

Cheguei à sala diminuta e fiquei frustrado ao notar que a mãe já doara tudo aquilo que até pouco tempo atrás dimensionava o sentido da palavra casa. Senti como se tivessem deitado a mão no que era essencialmente meu, coisas que nem dava valor, mas que com o processo de perda haviam ganho novo significado, repleto de nostalgia e valor afetivo.Tive consciência e ri do sentimento de posse, lembrando que não existe nada mais humano que dar ares superlativos a perda. Por vezes senti remorso, pois racionalmente sabia que esses objetos teriam mais utilidade aos receptores que a mim. Compreendi subitamente o que incomodava no vácuo da sala. O vazio da sala mimetizava o vazio interior.Cada canto perdeu referência, deixando-me totalmente alheio ao que se fez tão familiar por tanto tempo.

Invadi a cozinha com os olhos marejados. A gratidão tomou conta ao encontrar no pensamento as imagens das pessoas que fizeram parte da nossa vida e lá trabalharam. Continuava algo estranho, que prensava sobre o peito um fardo cada vez maior, carregado de medo do novo. Lembrava do cair de cada prato e do barulho, e isso incomodava. Pensei e elaborei, que a derradeira entrada na cozinha era como um jogar de prato no chão, algo definitivo, esfacelando todas as memórias daquele lugar a esquírolas de vidro que em breve poderiam constituir um lindo vitral ou encravar-se-iam nas entranhas de alguém, provocando dor.

O teto infiltrado do banheiro da parte baixa parecia chorar a despedida quando o vi desabar o pingo final, tão irritante e frequente. Ao percorrer com os olhos toda a dimensão deste lugar, tive clareza que o teto e eu derramávamos lágrimas iguais; nostálgicas e irmãs, afinal, depois de anos de convívio tínhamos testemunhado um o crescimento do outro. O crescimento dele eu quis parar muitas vezes, assim como faziam comigo na vida real lá fora.

Saindo da parte interna da casa tive acesso ao portão, o qual separava a sala da velha área de cimento. Entendi como ato falho o virar da chave para o lado errado. Este ato tão corriqueiro e mecânico equivocado denotava o inconsciente, na verdade eu não queria ir embora e tentava auto-argumentar que um futuro melhor me esperava.
A velha área recebia com primor as cadeiras de balanço brancas e os cachorros, sendo minha visão finda. Ela era a parte mais receptiva do lar, acolhendo parentes, amigos, conhecidos e transeuntes com o mesmo brilho, simplicidade e aconchego. Aceitava sobre ela as mais diversas funções. Por ser a parte mais simples nunca era elogiada e exaltada, mas nem por isso deixava de ser como era, simples. Talvez por isso, o destino a tenha reservado como derradeira imagem para que o reconhecimento existisse, mesmo nos instantes finais.

Ao cessar a última tramela notei-me oco, um pensamento infantil consumia toda a racionalidade. Parecia até que as memórias ficariam aprisionadas para sempre na casinha fincada no Pinheiro e que por vingança, causada pelo abandono, ela faria questão de apagar minhas histórias com uma mão de tinta e alguns moradores novos.
Personifiquei a casa, dotando-a de sentimentos. A primeira vista vi mágoa, buscando a companhia de outro menino birrento ou de algum garoto que sonha ser astronauta, músico ou bombeiro. Envolto na personalidade da casa, compreendi a complexidade e instinto maternal. Ela por anos havia acalentado meus sonhos e ajudado a construir quem sou. Imaginei que a casa tivesse perdoado, fazendo sinceros desejos de boa sorte na vida nova. Porém ela fez questão de dizer através dos ventos que lá avançavam, ganhando contorno em suas paredes, deixando surgir notas ao baterem em portas e janelas, para que eu fosse embora em paz, sem nenhum peso, pois eu havia de voltar para pousar a vista nela sempre com o mesmo olhar de carinho e amor, igual ao deste momento. Já ela, cuidaria de mim em silêncio e ficaria próxima, bastando que rememorasse nossos momentos para invocá-la, podendo guardá-la como símbolo de lar para todo o sempre.